domingo, 28 de novembro de 2010

Um Venerável Doutor



Amchi-la Tsultim estudou durante oito anos na escola de Kuan Tung Hooray, na Mongólia interna. Depois, outros cinco no mosteiro de Labrang Tashi Knyl, completando a sua preparação no campo das religiões e das artes. A partir daí começou a se dedicar à medicina, aprofundando o ensinamento de Buda e de todos os "paramitas", os textos clássicos orientais da arte médica, no famoso mosteiro tibetano de Drepung, e lá permaneceu por 25 anos.

Faltava-lhe ainda aprofundar-se na ciência dos Tantra (1) . E o fez, por mais nove anos, em Gyue me Dratsang, o melhor dentre os colégios tântricos do Tibete. Então visitou todos os grandes gurus, foi discípulo do lama Ling Rinpoche. Sob sua orientação e conselho dedicou anos a uma peregrinação "às 108 fontes d'água natural e aos 108 cemitérios", como manda o ritual. Por último, retirou-se para uma caverna, e por alguns anos ali viveu. Nu e solitário, jejuando muito, e suportando os calores estivais e as temperaturas abaixo de zero.

Hoje é o mais conhecido dos médicos tibetanos, da Mongólia até a Índia, vive exilado perto dos confins do Tibete, no enclave indiano (onde também se refugiou o Dalai Lama). Vem gente de todas as partes para pedir-lhe diagnósticos (médicos e espirituais), conselhos para o corpo e para a alma. Naturalmente, ele não pode mais ser tão jovem. Tem 104 anos. Chama-se Amchi-la Tsultim. Amchi-la quer dizer "um muito respeitável doutor", e Tsultim, que é sinônimo de geshe, pode, muito restritamente, ser traduzido como professor de filosofia. Tem uma aparência santa e qualquer um pensa, ou percebe que se prepara para "reencarnar", como o guru Rinpoche, seu mestre.

Quando estivemos na Índia, para uma pesquisa, sobre a medicina oriental, pedimos que nos desse uma entrevista. O venerável Tsultim respondeu com um sorriso afirmativo, solicitando, no entanto, que esperássemos. Mas o tempo, para nós, tem limites mais restritos, e era preciso partir, mesmo sem termos a entrevista. Mas confiamos cinco perguntas sobre a medicina tibetana (o diagnóstico, as farmácias, as terapias, a filosofia, a deontologia (2) a uma sua ex-paciente e depois devota aluna, a baronesa belga Olivia de Haulleville. Agora o santo homem nos respondeu, após ter meditado sobre as perguntas (três anos: nada, se comparado com o infinito).

O diagnóstico

Para descobrirmos a doença, disse ele, "dispomos de quatro vias: o pulso, a urina, os cinco sentidos e as perguntas". A última via, as perguntas, é a mesma que a medicina ocidental chama de anamnese: antecedentes do doente e dos familiares. Os sentidos permitem saber onde e o que dói, e como. A urina: o doutor examina, nela, a cor, o odor, os sedimentos; não usa reagentes químicos. (Examina naturalmente também as fezes, primeiro a "seco", depois movendo-as dentro de um recipiente com água para testar-lhes a consistência e outros fatores; se, depois, o paciente se presta a produzi-las naquele instante, avaliam-se o odor e o processo.) O exame do pulso também é usado na nossa medicina, mas na tibetana ocupa um lugar preponderante. "Fornece sozinho", diz Tsultim, "80% das informações que permitem chegar ao diagnóstico."

E explica: "Usamos a nossa mão direita para ler as batidas da mão esquerda do paciente, e vice-versa. Cada dedo dá a indicação do estado de um órgão específico: o indicador dá a pulsação do coração (nos homens; ao invés, dá as indicações relativas aos pulmões nas mulheres) e indicações sobre a condição do intestino delgado. O dedo médio informa sobre o estômago e o baço. O anular, sobre o rim esquerdo e sobre as vesículas seminais (os ovários para as mulheres). Tudo isso para a mão esquerda. Na mão direita o indicador demonstra o estado dos pulmões (nos homens; e o coração, nas mulheres) e o intestino grosso. O médio, fígado e vesícula biliar. O anular, rim direito e o condutor urinário".

O exame se completa exercendo-se diferentes graus de pressão: "o indicador do médico deve apenas tocar de leve a superfície, o médio, ao contrário, deve apertar ao máximo, comprimindo a carne, o anular deve apertar até sentir o osso". A um exame aprofundado (feito através das batidas internas percebidas pelo exame minucioso dos dedos) dos vários órgãos do doente segue-se o "reconhecimento do mal, o diagnóstico, e com ele a terapia apropriada para o tratamento".

 Os medicamentos

Enquanto os elementos farmacêuticos da medicina indiana se baseiam essencialmente em ervas, a medicina tibetana se apóia em igual medida nas ervas e nas pedras (naturalmente esmigalhadas e reduzidas a pó, depois misturado às ervas nos preparados farmacêuticos). "Usamos para os medicamentos ervas, raízes, frutos, flores, folhas, cascas e madeira de determinadas árvores; vinhos, água e terra, e pedras preciosas; produtos animais como o corno do rinoceronte, as glândulas do cervo, a bílis de outros animais." Moídos, todos estes produtos são misturados em uma pasta que se deixa secar e se divide, então, em pequenos grãos, de maneira a formar grandes pílulas, do tamanho dos nossos caramelos. O sabor é, em geral, desagradável, muitas vezes bastante amargo. Um componente básico de quase toda farmácia é uma planta indiana — myrobalans — chamada "remédio universal".


Merecem uma menção à parte duas pílulas especiais: o rilu e o Chu-len. O rilu, explica Tsultim, "é produto farmacêutico idealizado pelo meu mestre Rinpoche , capaz de devolver a saúde a uma pessoa que esteja morrendo envenenada". Protege, assim, a vida de toda e qualquer criatura, homem ou animal, "mesmo que seja só por contato": e aqui se explica a grande procura dos tibetanos pela pílula e o fato de eles incrustarem-nas e levarem-nas ao pescoço (ou no pescoço dos animais, que ali não são menos preciosos que os homens).

Quanto ao Chu-len, trata-se de "uma pílula que serve de alimento e que é feita especialmente para os sábios que querem retirar-se do mundo, permanecendo em meditações em algum lugar deserto, sem comida nem água. O Chu-len preparado com uma infinidade de ingredientes aos quais se acrescenta as "bençãos do guru" dá a quem o toma todas as vitaminas e as substâncias necessárias à sobrevivência física, torna a pessoa insensível à fadiga, dá a sensação de uma não-gravidade".

Ainda há mais: "Rejuvenesce, protege contra todas as doenças, aumenta a extensão da vida". É inútil perguntar se o venerável Tsultim tem condições de preparar o rilu e o Chu-len. É claro que tem, junto com outros pouquíssimos gurus. Revelará aos seus discípulos o segredo destas pílulas? Não responde. Somente acrescenta que "arrisca a vida quem ingere o Chu-len sem a autorização do guru".

 As terapias

Para a utilização e tratamento auxiliar dos produtos farmacêuticos, as terapias são as mais diversas e variam segundo a natureza dos males. A medicina tibetana usa a acupuntura e a moxa (combustão) chinesa, assim como recorre muitas vezes à sufumigação (3) e à sangria. Considera a dieta fundamental, pressupondo (isso acontece, principalmente, mesmo nos nossos tempos, no Ocidente) que "a maior parte das doenças do homem é conseqüência dos maus hábitos na nutrição".

"Nunca se poderia, por exemplo, consumir juntos" — diz Tsultim — "peixe e leite frio, ou carne e álcool: ingeridos ocasionalmente, estas combinações de comida e bebida não causam danos, mas se isso acontece continuamente, causa uma debilitação das capacidades digestivas o que vem a provocar formas de envenenamentos gástricos que se apresentam sob a forma de dores de cabeça e enfraquecimento da memória. Podem, também, dar lugar a distúrbios do pâncreas e das vias urinárias, além de doenças mais graves como tumores no intestino delgado e no duodeno."

E agora se entra no campo da medicina preventiva (que a arte médica tibetana, como a indiana, prefere) com o emprego de produtos vegetais e não-químicos: "Misturemos cinco ervas medicinais com o líquido do conduto seminal de animais comprovadamente estéreis: a mulher deve tomar o remédio no quarto dia de sua menstruação continuar tomando-o por sete dias: não ficará grávida por um ano".

Tsultim conhece, também, naturalmente abortivos vegetais eficazes. Mas usa-os somente "em casos muito particulares: a religião budista considera pecado qualquer forma de supressão da vida". Na cirurgia, medicina tibetana pratica "intervenções de cateterismo (4) do coração (atingimos músculo inserindo em uma veia um tubinho fino, para remover o excesso de água do coração) ou a cauterização de certos nervos, que praticamos para suprimir dores físicas rebeldes a qualquer outra espécie de cura".


 As leis médicas

O primeiro texto médico foi escrito por Buda, e relaciona "as quatro forças que compõem o organismo humano: tsa-gu, a terra; sha-gu, o fogo; mangna-chigu, a água; chima-gu, o ar (é inevitável lembrar a teoria hipocrática das índoles e a dos quatro temperamentos de Demócrito). Por fim é preciso falar, também, da vizinha medicina chinesa: nela a doença é a quebra do relacionamento entre a energia do sol e da vida (yang) e a energia da terra e da morte (yin)".

Os conhecimentos médicos tibetanos vêm todos do "Buda azul" ou Bhaisajya Buda ("Buda da medicina"), que hoje em dia, no Oriente, todos invocam quando caem doentes. Sobre os ensinamentos do Buda foram redigidos os quatro Tantra, as obras básicas que contêm a raiz do conhecimento médico, a técnica dos diagnósticos, a terapia das ervas, a preparação dos medicamentos; a grande quantidade de obras, algumas até bem recentes, vieram completar e modernizar os Tantra.

Como disse o Dr. Jeffrey Hopkins da Universidade de Virgínia (um atento estudioso americano da medicina indiana e tibetana), "a essência dessa arte médica é, podemos dizer, paranormal: uma palavra que nós usamos quando nos referimos a técnicas que não conseguimos compreender".

O doutor Gerard Goldstein, um seu colega, completou seu pensamento com maior realismo: "Devemos reconhecer que grande parte da diferença entre as ciências médicas está, sobretudo, na terminologia e nas classificações dos ingredientes: podem ser expressas de modos diferentes as mesmas coisas".


A Deontologia

O doutor Tsultim relaciona, assim, os princípios do código moral do médico:

"Nunca dar uma informação errada sobre a composição de um medicamento" (é, por assim dizer, um golpe mortal o uso ocidental dos "brevetes"). "Nunca dar um medicamento com o fim de matar" (quem pensa no juramento de Hipócrates, tenha em mente de que estas normas, o precedem em alguns milhares de anos).

Ainda: "Seja sempre uniforme na qualidade das tuas curas" (isto é, nunca tratar melhor a alguns pacientes que talvez tenham melhores posses, em detrimento de outros que não as possuem).

"Tenha para todos a mesma compaixão." Uma norma específica diz respeito ao médico: "Abstenha-se de consumir qualquer coisa que possa te intoxicar".

Há ainda uma regra que talvez não encontremos tão facilmente na ética e nas praxes da medicina ocidental. Diz: "Recorde-se que fez juramento de não pedir nunca nenhuma compensação pelos serviços que prestar".

* O venerável doutor vive (o texto é de 1976), atualmente, em Kalimpong, em uma cabana em que, quando chove, a água penetra abundante pelas fendas do teto.


 Glossário:


1) Tantra: obras básicas da medicina budista.

2) Deontologia: tratado dos deveres — ética profissional.

3) Sufumigação: aplicação de vapor medicinal.

4) Cateterismo: qualquer sondagem cirúrgica em canal ou conduto natural.



* Extraído de um texto de Giuliano Ferrieri - 1976


Nenhum comentário:

Postar um comentário