terça-feira, 5 de outubro de 2010

A água benta




Quando a medicina acadêmica atual ainda engatinhava, o corpo humano era visto como uma intricada máquina análoga àquela constituída por engrenagens, bombas, pistões, etc. Esse modelo mecanicista, hoje em desintegração, era considerado o único modelo aceitável e representa o que havia de mais avançado em matéria de ciência. 

Grande parte da medicina antiga baseava-se no chamado "consenso médico". Todos os modelos ou a filosofia de tratamento que se tornassem aceitos pelo establishment médico, eram tidos como uma espécie de evangelho e mantidos como verdades imutáveis pelos seus adeptos. Diversos tratamentos, incluindo o uso de sangrias, laxantes, catárticos e até mesmo sanguessugas, já estiveram em voga como recursos "oficiais” da medicina. Apesar da evolução tecnológica e do pensamento cientifico terem se tornado mais sofisticados, a filosofia da medicina moderna é bem semelhante à antiga, pois permanece o ponto de vista segundo o qual o corpo humano é somente um mecanismo físico. A diferença é que "as engrenagens e correias" estão se tornando progressivamente menores e adquirem funções cada vez mais amplas.

O tratamento das doenças baseava-se na aplicação de poções, misturas complicadas, cataplasma e métodos cirúrgicos que se tornavam consagrados. Ocasionalmente, faziam-se tentativas pioneiras de experimentar coisas novas, mas na maioria das vezes, esses médicos que experimentavam tratamentos diferentes, ou não ortodoxos, eram considerados charlatães pelos seus colegas. Este fato aconteceu com a descoberta do microscópio, que acabou mais tarde forçando os médicos relutantes a aceitarem as evidencias mostradas por Lister e outros pensadores pioneiros que afirmavam serem "germes invisíveis" a causa dos males.
 

Quando as pesquisas confirmaram a veracidade dos fatos, esses cientistas, antes tidos como excêntricos (Lister, Pasteur e outros) acabaram sendo elevados à condição de heróis da humanidade. Para muitos médicos, o conceito de influencias deletérias invisíveis era difícil de compreender e a incapacidade de acreditar que os germes podiam causar doenças contribuiu para a ocorrência de muitas mortes, muito sofrimento, e retardar o progresso da medicina, principalmente por dificultar a melhora das condições de higiene das salas de cirurgia. Os médicos operavam os pacientes de mãos nuas depois de terem manuseado cadáveres e outros enfermos. Não era comum os médicos se darem ao trabalho de lavar rigorosamente as mãos antes de uma cirurgia. A ausência de esterilização freqüentemente resultava em misteriosas infecções e em outras complicações.
 

Um caso que ilustra bem a condição obscura desse tipo de mentalidade foi o do Dr. Semmelweiss, médico de origem húngara e estabelecido em Dresden, (antigo império austro-húngaro, atual Alemanha), que, bem antes de Pasteur, aventou a possibilidade de existirem causas invisíveis capazes de produzirem infecções ou males febris. Semmelweiss era um professor universitário padrão e obstetra do hospital local, muito respeitado e guia de muitas dezenas de discípulos. Na sua época (século XIX), a obstetrícia era ainda muito rudimentar, sendo que a maioria dos partos eram realizados a domicilio, por parteiras ou por irmãs de caridade; os médicos só eram procurados para os casos complicados, o que raramente não se tornavam óbitos duplos devidos à falta de assepsia. Preocupado com isso, ele começou a observar os partos realizados pelas freiras, cuja incidência letal era muitas vezes inferior à daqueles realizados por médicos no hospital. Chamou a atenção do médico que a única diferença entre os dois tipos de atividades era que as religiosas lavavam suas mãos em água benta para "santificar o ato”. Nessa época, a medicina vivia o início da sua "racionalidade cientifica”, e que qualquer resquício de religião era radicalmente criticado. Secretamente, Semmelweiss adquiriu um pouco de água benta e passou também a lavar as mãos antes de realizar partos e cirurgias. Como o resultado foram muito satisfatórios, ele empolgou-se e passou a exigir que seus alunos fizessem o mesmo; a partir daí, a incidência de mortes por infecção pós parto diminuiu muito, mas o médico começou a ser duramente criticado pelos "doutos" (os representantes da Ciência Oficial) da época. Apesar das fortes evidencias, os demais professores não podiam acreditar na necessidade de "abençoar" as mãos. Durante a sua defesa num dos inúmeros processos que Semmelweiss sofreu, ele chegou a dizer:
 

 “Eu não sei do que se trata se é Deus ou alguma coisa, mas estou feliz por não perder mais tantas pacientes: aconselho, pois, que todos aqui adotem a mesma prática, pois a profissão médica existe para fazer o bem e não para se lançar em discussões vazias ou manter teorias sustentadas por vaidades".
 Além de ter sido expulso da universidade, Semmelweiss foi impedido de exercer a profissão e acabou morrendo na miséria, enquanto no hospital a incidência de mortos por infecção voltou à situação anterior. Conta-se, contudo, que diversos discípulos de Semmelweiss continuaram a lavar as mãos em água benta. Depois que o microscópio mostrou a existência dos germes e as opiniões tiveram que mudar, o trabalho de Sommelweiis foi finalmente reconhecido.
  
Hoje existe em Dresden uma estátua em homenagem a ele!  

* (Baseado em um texto de Márcio Bontempo de 1994)

* "Uma evidencia científica não se torna aceita porque seus opositores mudam de idéia, mas sim porque esses morrem e surge uma nova geração que se acostuma com a verdade."  (Max Planck)

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